Cine Arkade – A quebra de expectativas de O Desafio de Marguerite

8 de dezembro de 2023
Cine Arkade - A quebra de expectativas de O Desafio de Marguerite

Ainda que se aproprie de vários dos principais clichês do cinema convencional estadunidense hollywoodiana, certas cinematografias são muito competentes em ressignificar algumas das verdades com as quais já estamos tão acostumados pela bagagem que acumulamos ao longo de nossa vida. A premissa de O Desafio de Marguerite (Le Théorème de Marguerite, França, 2023) pode não parecer tão diferente de outras tantas coisas que já vimos, mas é no desenvolvimento proposto pela cineasta Anna Novion onde está seu maior e mais consistente diferencial.

Marguerite é uma matemática brilhante, aluna de doutorado da tradicional Escola Normal Superior de Paris, cuja tese tem um grande potencial de provar alguns dos conceitos mais complexos da sua área. Obstinada, ela se vê diante um desafio inesperado, uma variável imprevista que lhe retira suas convicções não só de carreira, mas também na forma como ela lida com o mundo a sua volta. Ao se questionar sobre onde estava, ela pode buscar novas leituras de quem ela é.

Cine Arkade - A quebra de expectativas de O Desafio de Marguerite

A protagonista da história nos é apresentada com algumas das características mais estereotipadas de como vemos um pesquisador sobretudo da área de exatas, com maneirismos peculiares, deslocamento social e uma certa aversão ao que está fora de sua bolha. Em outras palavras, somos ludibriados pelos realizadores a entender Marguerite como mais uma nerd reclusa e genial incompreendida, como já vimos, por exemplo, John Nash Jr., interpretado por Russell Crowe em Uma Mente Brilhante de 2001; ou Stephen Hawking, vivido por Eddie Redmayne em A Teoria de Tudo, de 2014.

Ao longo da trama, porém, algumas expectativas pouco atraentes caem por terra ao termos um desenvolvimento bastante crível de uma pessoa comum, com suas falhas e tropeços, mas também com suas virtudes e qualidades que vão para além de sua inteligência matemática extraordinária. A jornada de amadurecimento foge de colocá-la no pedestal da quase divindade incompreendida, armadilha atraente para histórias do gênero, e ao mostrá-la humana, o filme nos torna seus cúmplices e, ao mesmo tempo, nos coloca diante um espelho. Eu conheço Marguerite, eu poderia ser Marguerite.

Cine Arkade - A quebra de expectativas de O Desafio de Marguerite

A produção faz, portanto, a opção menos óbvia, a de não tornar o enredo algo mais ganancioso do que deveria ser. Sim, seu trabalho é, dentro da academia, revolucionário, mas ela continua sendo a colega de quarto, a mulher que ainda precisa entender seus sentimentos, sua relação com a família, com os amigos, com o mestre, com o mundo. Se estudiosos, pesquisadores e cientistas conseguem criar uma relação de compreensão das angústias pelas quais Marguerite passa, o longa jamais se torna hermético e restritivo, e possibilita que cada um de nós, com suas próprias batalhas, possamos nos entender naquele lugar.

Escolhas por uma fotografia mais contida, que permeia as sombras não pela intimidação, mas pela intimidade, nos exclui do mundo exterior como o drama da heroína faz com ela mesma. Andar por entre paredes escuras não a coloca nas trevas, não a oprime como uma vítima de seus próprios medos. Ao contrário, foi ela quem decidiu pela tinta preta, por tornar qualquer espaço de limitação um lugar de onde pode emergir a luz, e não de qualquer fonte, mas sim do conhecimento. Da ciência sim, mas sobretudo de si própria. Não se perder no processo, entretanto, pode ser bem mais difícil do que achar as verdades incontestes da matemática.

Cine Arkade - A quebra de expectativas de O Desafio de Marguerite

O olhar para o subtexto, que coloca uma protagonista mulher no centro de um espaço tradicionalmente ocupado por homens, não poderia ser guiado por outras mãos que não a de uma diretora (que também assina o roteiro) que, ainda sedimentando sua carreira no cinema, consegue trazer uma perspectiva refrescante para um mundo cheio de vícios. Anna Novion parece buscar o olhar fugidio de Marguerite e não economiza dos planos próximos e em uma perspectiva de câmera baixa, a contrapondo ao seu oposto, um outro jovem pesquisador conceituado, primeiro como antítese, mas depois como complemento. Para além de uma inversão de papéis, uma subversão deles.

O desfecho, sobretudo a partir do último terço do filme, é porém um tanto quanto reducionista, apresentando soluções rápidas e, por vezes, simplistas para os conflitos gerados. A carreira, que a princípio parece fadada ao fracasso absoluto, acena o tempo todo com uma possibilidade de retorno assim que a protagonista, vivida de forma sólida pela atriz Ella Rumpf, decidir que assim o quer. Não há qualquer sensação de risco real que não as escolhas tomadas por ela mesma.

Cine Arkade - A quebra de expectativas de O Desafio de Marguerite

Do mesmo modo, as sub-tramas relativas a problemas financeiros e de relacionamento com a mãe simplesmente desaparecem com uma ou duas linhas de ação e o foco se direciona para outro lado. Há uma relação quase cartesiana de premiações advindas da adoção de comportamentos socialmente ditos melhores, o que empalidece o arco da protagonista em sua individualidade, mesmo que não o desmereça. Por mais que o longa tenha me entregado o final para o qual eu torcia, não significa que ele não tenha me decepcionado, salvo que em experiências assim, vale o caminho, não o destino.

O espectador, portanto, passa por alguns processos de certeza e de quebra de expectativa, mas muito provavelmente antes de se deliciar com qualquer incerteza, é guiado novamente para o conforto da previsibilidade. Você sabe, nos primeiros quinze minutos, como o filme irá terminar, deixa de saber quando somos guiados para direções menos óbvias, mas logo somos reconduzidos à uma zona de conforto, algo que para uma obra artística, pode não ser tão interessante assim, porque deixa de nos desafiar e se torna um aceno, um cobertor quentinho para uma tarde chuvosa.

Cine Arkade - A quebra de expectativas de O Desafio de Marguerite

O Desafio de Marguerite se mostra, ao final, um convite à quebra de expectativas. Primeiro, ao derrubar arquétipos reconhecíveis sobre o gênio incompreendido, a pessoa à frente do seu tempo, mostrando sua protagonista em suas fragilidades tentando sobreviver em um mundo pouco moldado à suas vontades ou mesmo às verdades matemáticas com as quais se sente confortável. Depois, porém, oferece uma nova quebra, desta vez com o desenvolvimento da trama, trazendo-a para o lugar comum e nos carregando no colo para um final desejado, mas pouco disruptivo. É como se propusesse um teorema sofisticado para resolver um problema simples que, no final, acaba se resolvendo com uma equação de segundo grau.

Paulo Roberto Montanaro

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