Análise Arkade: 2Dark e o peso narrativo de um bom thriller noir

13 de março de 2017

Análise Arkade: 2Dark e o peso narrativo de um bom thriller noir

Quando se teve a notícia de que o criador do clássico survival horror Alone in the Dark, Frédérick Raynal, estava por trás de 2Dark, automaticamente as expectativas quanto a esse game cresceram em escala geométrica. Afinal, o cara é simplesmente o grande idealizador de todo um sub-gênero que mais tarde foi incorporado em clássicos como Resident Evil e Silent Hill, só para ficar nos mais conhecidos.

Afinal, se a franquia que ele criara hoje não condiz com tudo o que trouxe de novo ao mundo, 2Dark, com mais liberdade por ser um jogo menos compromissado com o mercado convencional de franquias AAA, poderia não só tomar corpo por meio das estratégias narrativas enraizadas no gênero como trazer algo novo para o mercado. E, de certa forma, o jogo cumpre as expectativas, oferecendo um tom de gravidade e maturidade narrativa pouco visto no mundo dos games.

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Uma história mais instigante que original

Uma análise fria do plot narrativo de 2Dark mostra que, de fato, não é a história mais original do universo. Aqui, assumimos o papel de Mr. Smith, um ex-detetive que em um momento de tranquilidade com a família se vê no meio de um ato de extrema violência, com sua esposa assassinada e seus filhos sequestrados. Absolutamente impotente diante a situação, sua vida se transforma em um inferno e, anos mais tarde, ele encontra um fio de esperança para retomar sua busca.

Nesse caminho, já desacreditado pelo mundo e por si mesmo, e sem nada a perder, tal como os mais pesados trillers noir ele segue uma pista que o leva a vários psicopatas, serial killers, sequestradores e torturadores de crianças, na esperança de chegar até aquele que lhe destruiu a vida. Nessa jornada de redenção, ele tem a chance de, ao menos, fazer por outras famílias aquilo que não pode fazer pela própria.

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Assim, como a premissa deixa transparecer, a temática não é boba, muito menos recomendada para crianças. É um jogo que traz uma violência simbólica muito mais impactante do que gráfica. Afinal, o visual não chega a ser realista, e não vemos desmembramentos ou coisas com tom mais gore, como muitos dos jogos de terror atuais, mas é na parte mais conceitual que está o que de mais perturbador podemos encontrar em 2Dark.

Apresentada de forma mais direta em modo textual em telas de inter-título e mais sutil em termos visuais, com salas escuras com ossadas, caixões com pequenos esqueletos espalhados pelo cenário ou mesmo com documentos espalhados, o game consegue estabelecer um clima bastante pesado, tal como a história pede. Não há aqui atenuantes para deixar o game mais leve. Tudo é pesado e tem a gravidade crua que se exige de uma história de assassinos e sequestradores de crianças.

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De volta às raízes do survival horror

Quando se fala desse sub-gênero, certamente poucos escapam de pensar automaticamente em Resident Evil, franquia que popularizou o horror de sobrevivência. Mas muitos também conseguem se lembrar que tudo começou antes, com o primeiro Alone in the Dark estabelecendo parâmetros muito mais importantes do que o posicionamento de câmera ou mesmo os tipos de inimigos encontrados.

Felizmente todos esses elementos estão presentes aqui, ainda que repaginados. 2Dark é um jogo com visão isométrica, onde é possível ver um espaço muito mais amplo que um jogo de terror convencional. Seu trunfo está em trazer ao centro da ação um personagem comum, ainda que com habilidades de investigação, mas sem qualquer capacidade sobre-humana. É um sujeito comum diante uma situação extrema, algo que lhe confere a vulnerabilidade necessária para dar insegurança ao jogador.

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Soma-se a isso a escassez de recursos, incluindo elementos de combate limitadíssimos e, por vezes, improvisados, e uma consequente necessidade de administração responsável do que se consegue coletar dentro de cada fase. Armas de fogo existem, mas as balas são contadíssimas, e armas brancas, como facas e bisturis pouco são úteis em combates abertos. O planejamento e a furtividade se tornam, portanto, ponto fundamental da ação do jogo.

Ou seja, sair de peito aberto matando todos os inimigos, ou mesmo personagens que estão onde não deveriam, mas que podem atrapalhar, não é uma estratégia sustentável. A primeira fase até permite esse tipo de abordagem, até como forma de ensinar algumas das mecânicas básicas do jogo, mas não demora para que o jogo lhe ensine, da pior forma possível, que isso não funciona por muito tempo.

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Parte da dificuldade reside no fato de que o gerenciamento de recursos acontece em tempo real, com um inventário lateral acessível a todo momento. Isso significa que não dá pra pausar o jogo para escolher as armas a serem usadas, ou ainda decidir com calma se mantém o isqueiro aceso ou não. Tudo tem que ser feito com planejamento estratégico e qualquer falha é fatal, ocasionando em mortes ou, na melhor das hipóteses, no uso de recursos escassos que não voltam mais.

O problema é que todos os itens coletados ficam juntos em uma mesma página do inventário. Ou seja, armas, munição, lanterna e documentos ficam juntos, na ordem em que foram recolhidos. O acesso rápido aos recursos mais dinâmicos fica prejudicado em um menu que, em certos momentos, acaba ficando cheio, com a grande maioria dos itens pouco ou nada práticos para o combate, ou mesmo para a fuga. Mesmo bem organizado, é bem pouco prático de se usar.

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Outra grande limitação que está muito atrelada ao próprio gênero, mas que ainda assim acaba incomodando é o sistema simplificado de combate corpo-a-corpo. Fatalmente, o protagonista irá encontrar desde galhos secos a bisturis e facas de cozinha espalhados pelo cenário, que podem mais tarde ser usados para atacar agressores. Se esses objetos fazem mais sentido diegético do que armas e munições, eles acabam atrapalhando bastante quando se tem um momento cara-a-cara.

Isso porque com um personagem comum, é fácil ser atingido e morrer após dois ou três danos, sejam com armas de fogo, sejam em ataques diretos. O confronto direto tende a desfavorecer o jogador, que normalmente é mais fraco do que os inimigos. Ou seja, a troca direta de golpes pouco funciona. O melhor é chegar sorrateiramente e atacar pelas costas, como um bom assassino a sangue frio. 2Dark, como dito anteriormente, favorece a ação friamente calculada.

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Tudo isso, somado, oferece ao jogador uma sensação de insegurança constante. Um cachorro a mais do que as balas disponíveis pode significar a impossibilidade de vitória, dependendo da forma como o jogador enfrenta as dificuldades. O problema é que a jogabilidade limitadíssima também pode parecer um pouco anacrônica para um jogo nos dias atuais e pode afastar aqueles que esperam um pouco mais de liberdade de ação.

Audiovisual

2Dark não tem medo de se assumir um jogo nostálgico. Não só em termos de jogabilidade ou na dificuldade elevada, mas também na parte visual, o jogo sabe exatamente com quem está dialogando e de onde são as suas origens. O visual isométrico clássico de jogos de exploração é só um desses indícios. O maior deles, porém, fica por conta da construção artística, bastante enraizada nos elementos hoje chamados de pixel art.

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Assim, o visual dos personagens remete ao tempo dos 16 bits, mas diferentemente de outras produções atuais, não se permite uma estilização do traço, o que daria mais valor às cores e aos contrastes. Ao contrário, há um elemento estético que, de fato, trata o visual com um filtro datado, onde mesmo os tons de pele e a movimentação são tratados com esse ar retrô. As cores e nuances são, sobretudo, uma grande homenagem às obras mais sóbrias de 20 anos atrás, até pela temática mais adulta e pesada.

Há um trabalho bastante elegante também na concepção do espaço cênico e nas nuances entre a luz e a sombra. A escuridão, como se pode prever pelo próprio título do jogo, é um fator importantíssimo na trama, fazendo parte inclusive das estratégias de ação do personagem. O jogador pode tanto utilizá-la como aliada como também sofrer para se movimentar por ambientes pouco ou nada iluminados.

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Assim, ainda que utilize e se mantenha fiel a uma estética de limitações técnicas, há uma sofisticação bastante evidente na articulação entre os diferentes espaços de uma mesma fase, e até uma ligação bastante coerente ao longo da jornada. Em um parque de diversões abandonado ou em um sanatório, as pequenas frestas, abajures ou candelabros são quase como formas de alívio para uma noite quase interminável.

Essa dualidade entre a luz e as trevas, a pequena chama de um isqueiro ou a energia mais forte, mas muito mais limitada de uma lanterna, e o certeiro e profundo escuro não só funcionam como elemento estético como também trazem à tona um estado de espírito vivido pelo próprio protagonista, onde pequenas fagulhas ainda mantém um sentimento de esperança em meio a um enorme e vazio mundo de trevas.

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Ainda que não seja um visual especialmente atraente, e em certos pontos até meio grosseiro, é coerente com a proposta e funciona bem enquanto uma parte mais simbólica do jogo. O tempo parou para o personagem desde seu momento de infortúnio, e o antagonismo entre luz e sombras só reforçam o quanto sua alma está perdida em meio à angústia. É um bom trabalho artístico, mas, por outro lado, desperdiça o potencial técnico atual para trabalhar detalhes, nuances e explorar melhor o tema.

Conclusão

2Dark, desenvolvido pela Gloomywood e publicado pela Bigben Interactive, é bastante competente ao aliar uma história grave e pesada a uma jogabilidade digna do gênero, apelando para uma estética nostálgica e, ao mesmo tempo, sofisticada e atrelada à jornada do protagonista. Se essas escolhas são muito coerentes em si, ao mesmo tempo são carregadas de limitações que podem estar perdidas no tempo e, desta forma, o jogo não deve agradar a todo tipo de jogador.

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A dificuldade é relativamente alta e o fato de ser possível salvar a qualquer momento – desde que não esteja em meio a um conflito – pode ser ótimo para não se perder avanços e, ao mesmo tempo, péssimo quando se salva uma ação errada. O inventário dá mais trabalho do que deveria e é bastante limitado, enquanto o sistema de combate é simplificado e, por vezes, frustrante por não ajudar na hora onde o jogador escolhe bancar o Rambo.

O conjunto da obra é, portanto, desafiador e, para quem se permitir uma imersão mais profunda na narrativa, perturbador. Não é daqueles jogos que se pega para os clássicos 15 minutinhos de relaxamento, nem daqueles que apelam para o jump scare para manter o jogador tenso. Nesse sentido, funciona muito bem como um survival horror, e não como um jogo de terror de fato, tal como remete a cartilha do gênero, grande parte escrita pelo próprio criador de 2Dark.

 

2Dark foi lançado em 10 de março para PC, XBox One e Playstation 4 (versão usada para esta avaliação), e está com os textos e legendas totalmente localizados para o português.

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