Análise Arkade: Overpass e a linha tênue entre desafio e frustração

6 de abril de 2020
Análise Arkade: Overpass e a linha tênue entre desafio e frustração

Não é segredo para ninguém que o gênero de corrida — também conhecido como “jogo de carrinhos” — é dos que menos sofreram mudanças substanciais em sua estrutura ao longo de toda a história dos games. Melhoram os gráficos, mudam os sistemas multiplayer, mas a base continua a essencialmente a mesma, salvo inovações que surgem aqui e acolá.

Overpass traz consigo algumas das propostas mais inovadoras desta geração para o gênero, oferecendo um game com veículos muito mais pautado no trabalho estratégico e até na solução de algo similar a quebra-cabeças para ultrapassar percursos totalmente inóspitos do que na velocidade e na plasticidade tão convencionais. Busca, assim, atingir um nicho muito pouco explorado nos games, uma versão mais hardcore do chamado off-road mais ou menos como vimos em MudRunners, que foge de propostas como a de DiRT Rally 2.0 ou de Wreckfest, por exemplo.

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As intenções, posto isso, são ótimas. O resultado, porém… vejamos melhor.

Uma campanha convidativa

A organização do principal modo do jogo, uma campanha baseada em temporadas competitivas por tempo, se não é exatamente inovadora, é muito bem engendrada. Temos um tutorial de base que dá início ao processo, e as missões que se seguem são estruturadas em uma formato teia, abrindo novos desafios de acordo com os caminhos escolhidos. Uma progressão linear em termos de dificuldade, mas ainda personalizada e única para cada jornada.

Logo nesse tutorial, que apresenta as mecânicas básicas do game e os dois principais tipos de veículos — os quadriciclos ATV e os monopostos UTV — fica claro que o jogo vai exigir muito mais técnica do que rapidez. São poucos os trechos de pé embaixo e normalmente são somente passagens de transição para os pontos realmente importantes. Fica aqui uma uma dica necessária: mesmo que surja essa possibilidade, não se deve pular qualquer trecho do tutorial. Isso não será possível depois e é bom entender que se não conseguir superar algum obstáculo nesse momento, é melhor abandonar o jogo, porque tudo só vai piorar muito depois (sem a chance de poder pular, todavia).

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As grandes estrelas de Overpass são os barrancos enlameados, os pedregulhos pouco convidativos e outros tantos obstáculos (naturais ou não), bem como capacidade de superá-los, ou assumir a derrota. E assumir a derrota não é fazer um tempo alguns segundos mais lento, ou ficar em oitavo na competição de tempo em relação à CPU. É simplesmente desligar o jogo, provavelmente jogando o controle no meio da tela e dando um belo soco na parede de casa. Como adiantei para minha família enquanto analisava o jogo, falar atrocidades para o jogo sozinho no meio de uma corrida é absolutamente normal (ainda que provavelmente não seja tão saudável assim pra mente e pro coração).

Isso porque, tão íngreme quanto os piores trechos das pistas presentes já nos primeiros desafios, é a curva de dificuldade. Não há muito tempo para adaptação e vencer, já nas primeiras missões, é algo difícil e quase circunstancial. Não tarda para que decidamos que melhor do que conquistar bronze, prata ou ouro (medidos sempre pelo tempo que se demora para superar a missão proposta) é conseguir chegar ao fim. Chegar em último, logo nas primeiras horas, já começa a ser encarado como uma vitória.

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Consciente disso, a progressão valoriza a resiliência do jogador: as missões seguintes são abertas independentemente da posição final na anterior. Terminar o percurso é o único pré-requisito. Chegar entre os primeiros colocados, claro, dá direito a patrocínios, bônus financeiros mais gordos, peças e acessórios para veículos e motorista, mas são prêmios secundários, ao menos na primeira temporada, quando ainda temos disponíveis somente os veículos padrão e quando as melhorias ainda estão bloqueadas.

Ainda dentre os modos de jogo, estão os desafios personalizados e a possibilidade do multiplayer (competindo contra fantasmas de outras pessoas reais) e local com tela dividida (verticalmente, que não ajuda em nada em termos de visão periférica dos ambientes). Ótimas adições, sobretudo para quando se pretende algo menos compromissado do que a campanha.

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Provavelmente, se em algum momento estar impedido de avançar se tornar um empecilho para continuar jogando — já que na temporada não é possível sequer repetir as missões cumpridas — os modos mais casuais são um verdadeiro momento de pausa e relaxamento e podem oferecer uma longevidade maior ao game, até porque já há veículos melhores e o desafio não é tão grotesco assim.

Um gameplay seletivo (até demais)

É quando o contador zera, e a corrida começa, que as inconsistências do jogo aparecem. Muito para além da dificuldade elevada, o jogo apresenta alguns problemas estruturais que podem desencorajar até os maiores entusiastas da aventura motorizada ao ar livre, sobretudo no conjunto entre a física e o level design, que parecem conversar muito pouco entre si.

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Voltando ao básico, os dois tipos de veículo oferecem várias similaridades e algumas diferenças. A principal delas é que, no quadriciclo, é possível ajustar a posição do corpo do piloto para criar contrapeso e buscar equilibrar o veículo para não tombar. Fora isso — e, claro, o porte do veículo que muda peso e tamanho — o controle é bastante claro: a dualidade entre a tração em duas e quatro rodas, que pode ser alterada a qualquer momento da pista. Por padrão, é bom saber quando acionar um ou outro para ganhar velocidade ou tração.

Além disso, há uma opção de travar o diferencial, algo que pode melhorar o grip e potencializar a força para subir e ultrapassar obstáculos mais duros, ainda que prejudique a dirigibilidade. Isso significa que é uma função necessária, mas para se utilizar em momentos bem específicos. Mesmo que pareçam poucas opções para um gameplay tão pautado na simulação, é no controle do giro do motor que está o maior segredo de Overpass. Saber utilizar as nuances no gatilho é o que separa o sucesso do rage quit instantâneo.

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A questão é que a física do jogo não favorece essa característica. Na maioria do tempo, precisamos nos preocupar muito mais com tufos de grama e pequenas variações no terreno, porque o menor dos desníveis no terreno podem causar um tombo e arruinar um trabalho cuidadoso, algo que realmente até faria todo o sentido, dada a proposta do jogo, se fosse bem dosado.

Só que o peso dos veículos foge do realismo proposto e, em certos momentos, parece que estamos andando com aquele modificador que tira a gravidade em games de kart, resultando em carros que ficam quicando como balões de gás ou bolas de plástico. Soma-se a isso amortecedores que parecem não trabalhar de forma independente entre os lados esquerdo e direito, fazendo com que qualquer pedra maior que uma bola de gude tombe o veículo de lado, e uma tração estranha que por vezes sobe inclinações dignas de comercial de picapes e outras não consegue subir um morro da altura de uma lombada de rua. É imprevisível.

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Assim, as quedas são inevitáveis, e o desafio se transforma em frustração gratuita no momento em que elas se tornam muito mais regulares do que o esperado, sobretudo quando se tem a certeza de estar tomando todas as precauções possíveis. A cada momento que o veículo está com as rodas para cima, é possível retomar o obstáculo do começo e a repetição se torna nossa mais ingrata companheira. E aí está o segundo aspecto que gera um desencontro no game: o desenho dos níveis.

Os ambientes são tão agressores quanto deveriam. Subir encostas, superar pistas cuidadosamente destruídas e passar sobre todo tipo de obstáculo é o coração do jogo, mas se torna algo muito opressor quando apresenta passagens cuja solução está num intervalo muito estreito de ação do jogador. Não são raros os ambientes que apresentam várias possibilidades de abordagem, mas onde somente a tração certa, com a entrada exata e a aceleração perfeita podem ajudar a superar. E aí a precisão absurda colide com uma física caótica e traz consigo a pior sensação de repetição sem aprendizagem, o elemento mais clássico da frustração em games.

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Perceba, o problema está longe de ser a dificuldade. Aprender a jogar, buscar a abordagem correta, compreender as janelas de ação e reação, tudo faz parte de um bom equilíbrio entre o desafio e a recompensa, algo que — para ficar no exemplo mais óbvio — a série Souls sabe fazer de forma magistral. Sofrer e repetir algo até ficar bom o suficiente para compreender como superá-lo é a essência da competitividade (inclusive, consigo mesmo). Infelizmente, Overpass fica longe de ser equilibrado neste aspecto.

Consideremos ainda que a escolha (acertada) de passarmos o tempo todo competindo contra o tempo, e não contra outros adversários dividindo o mesmo circuito, facilita a inexistência de fatores aleatórios de dificuldade, como alguém empurrando nosso veículo para um traçado pior ou mesmo danificando o equipamento de forma injusta (até porque cada dano piora a dirigibilidade ainda mais). Todas as variáveis deveriam ser controladas para dar o controle total ao jogador, mas ao invés disso, em grande parte do tempo a sensação é que estamos sujeitos a uma infinidade de outras coisas que fogem ao nosso controle.

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O resultado disso: você pode passar 10 vezes pelo mesmo ponto de forma arrojada ou conservadora, e na décima primeira, por um traçado minimamente diferente, entrar de forma desajeitada em uma curva e ficar encalhado por 10, 20 minutos no mesmo lugar que já sabe como ultrapassar, já que voltar ao ponto pode não colocá-o na velocidade de entrada correta. Em outros momentos, você pode repetir algo até aprender exatamente que precisa acelerar a exatos quatro mil giros no motor e, ao passar novamente por lá, a mesma estratégia resultar diferente.

Em resumo, o que podemos adiantar para os entusiastas desse segmento é que a paciência, a meditação e a paz de espírito devem estar em dia antes de iniciar o game. Resiliência talvez seja o maior aprendizado para quem estiver disposto a enfrentar Overpass, sobretudo porque serão vários os momentos onde a impressão será a de estar sendo punido por algo de que não se tem absolutamente nenhuma culpa.

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Passando raiva, mas curtindo um belo pôr-do-sol

Se há um aspecto que tem se destacado em vários dos games desse gênero, mesmo alguns que não estão dentre os de maior investimento financeiro, é o nível de qualidade audiovisual. Nesse aspecto, Overpass consegue funcionar muito bem e manter um nível bem alto, trazendo alguns dos efeitos de luz mais belos do ano. Texturas em terrenos molhados ou arenosos, vegetação e materiais minerais estão especialmente bem trabalhados, sobretudo quando vistos em vários momentos do dia.

Os tons alaranjados de um fim de tarde trazem representações muito agradáveis de espaços rurais e montanhosos, distantes do cinza da urbanidade. Mas é o terreno que tem seu destaque especial. A lama espirrando e a poeira levantada geram efeitos cosméticos interessantes, e oferecem uma soma entre a sensação da tração e do chão por onde se está passando. Os efeitos de água e grama brilham um pouco menos, assim como montanhas e planícies no horizonte, mas são detalhes que não incomodam em momento algum.

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Ainda que o giro alto (e sem tração) do motor de grande parte dos veículos — sobretudo dos iniciais — acabe remetendo a cortadores de grama, saber controlar bem quando acelerar e quando usar a cautela também tem o seu reflexo sonoro, e não há do que reclamar aqui. A ambientação imersiva é potencializada pelas gradações no ronco dos motores off-road.

Ruídos e efeitos sonoros externos poderiam aproveitar melhor cachoeiras, pássaros e outros elementos naturais na construção espacial e na profundidade dos cenários, mas não fazem feio e cumprem bem seu papel. A trilha musical carrega no rock ‘n roll e brilha em menus e telas de carregamento, porém, mais do que durante o jogo em si.

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Ainda que as vezes a câmera do jogo fique maluca (quase sempre quando estamos capotando como um bug de praia subindo uma parede) e que a visão de dentro do veículo seja pouco recomendada — já que grande parte dos obstáculos mais irritantes sejam desníveis e pedregulhos abaixo do campo de visão — a apresentação estética do jogo é uma das suas melhores qualidades, somando-se ainda a uma interface muito lúcida e simples o suficiente.

Conclusão

Overpass é um conjunto de boas e inventivas ideias que infelizmente parecem um tanto quanto desconjuntadas. Temos um jogo com visual refinado, uma proposta hardcore para aventura sobre quatro rodas, mas com uma física inconstante e um level design que se aproveita pouco das qualidades, desenhado com a proposta de dificultar, mas que acaba só desagradando e criando uma série de passagens frustrantes. É como se quem fez uma coisa não tivesse conversado com quem fez a outra antes de juntar tudo no mesmo arquivo.

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O resultado é um jogo esteticamente polido, mas cuja repetição despropositada, momentos de puro tédio e desejos que estão muito mais para “não aguento mais” do que para “preciso aprender e fazer diferente” acabam criando uma sensação do difícil pelo difícil, e da recompensa inexpressiva diante o esforço, algo fatal para qualquer game, de qualquer gênero. Sinceramente, não me vejo voltando a Overpass, mesmo que para comprar equipamentos melhores em novas temporadas. Nesse caso, não há fim de jornada que justifique o caminho pedregoso.

Overpass está disponível para Playstation 4, PC e XBox One, com textos localizados para o bom e velho português brasileiro.

2 Respostas para “Análise Arkade: Overpass e a linha tênue entre desafio e frustração”

  • 6 de abril de 2020 às 21:51 -

    Helinux

  • Show de analise, bem detalhado!!!! dukralho!!!! valeu!!!!
    Não curto muito o estilo do game…sou mais da fase Grant turismo e Ridge Racer que jogo muito!!!!! Jogos de corrida depende muito dos controles ou se é off-road, estrada, Gp e outros!!!! valeu!!!!

    • 7 de abril de 2020 às 23:59 -

      Paulo

    • Obrigado pelo feedback, Bro. É sempre bacana poder ouvir e sentir essa repercussão! Tâmo junto!

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