Filosofia Arkade: Jogamos muito sem zerar nada?

26 de setembro de 2015

Filosofia Arkade: Jogamos muito sem zerar nada?

“Interrupção, incoerência, surpresa são as condições comuns da vida” (Paul Valéry). A mente humana moderna se alimenta de estímulos passageiros e constantemente renovados. Podem os jogos atuais acompanhar essa tendência e se transformar em algo sempre inacabado? Venha pensar conosco em mais uma Filosofia Arkade!

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em seu livro Modernidade Líquida, examina como se deu a passagem de uma sociedade “pesada” e “sólida” para uma modernidade “leve” e “líquida”, fazendo uma analogia com a propriedade dos estados da matéria — isso mesmo, sólido, líquido e gasoso.

Sabemos que líquidos e gases podem sofrer facilmente alterações, enquanto que os sólidos tendem a preservar suas formas quando uma força é aplicada sobre eles. Ou seja, enquanto os líquidos podem ser deformados, os sólidos tendem a ser resistentes.

Filosofia Arkade: Jogamos muito sem zerar nada?

Fazendo essa analogia, Bauman afirma que a modernidade que vivemos hoje é líquida: altamente dinâmica, pois não possui forma específica. O que conta para ela é o tempo, não o espaço que ocupa (uma ocupação passageira, por sinal). Tudo deve ser ágil e propenso à livre mobilidade.

O que é líquido é fluido; tudo contorna, escapa e se esvai. Vemos isso como algo leve e associamos essa leveza ao movimento, ao dinamismo. Você deve estar se perguntando: mas o que tem a ver a modernidade líquida com games?

A dinâmica da sociedade moderna atual leva a uma busca incessante por algo novo e inspirador, de modo que nada é algo plenamente satisfatório, fazendo com que essa busca se torne um vício.

Filosofia Arkade: Jogamos muito sem zerar nada?

Quanto mais procuramos, mais precisamos, e essa constante necessidade destrói a possibilidade de satisfação. E aqui chegamos nos jogos.

Fazendo uma interpretação do texto de Bauman sobre os objetos de desejo dos consumidores da Modernidade Líquida, podemos afirmar que os jogos de hoje são atraentes enquanto não testados. Muitos não cumprem o que prometem e, mesmo quando cumprem, isso não satisfaz o jogador, pois sempre há uma variedade imensa de opções à nossa disposição.

O que falar da enxurrada de DLCs que temos presenciado? São mesmo necessários? Isso pode ser reflexo da liquidez moderna, a necessidade de constante renovação e, claro, o aproveitamento dessa necessidade pela indústria e pelo comércio.

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Muitos games, mesmo que de última geração e feitos na melhor engine existente, no momento que são experimentados se tornam obsoletos, não porque sejam ruins ou ultrapassados, mas porque têm que competir com novos e mais aperfeiçoados jogos lançados a cada momento.

Quem gosta de games que se repetem? É tentador ver uma remasterização, mas muitas apenas parecem ser feitas para vender num console new gen, sem nada acrescentar de novo ou mesmo graficamente. Então isso não é uma remasterização, é apenas a disponibilização desse game para novas compras.

Para Bauman, esse consumo é como uma corrida muito longa para alguém que não treinou: comecei, mas não posso terminar. Assim, torna-se satisfatório apenas permanecer nessa corrida sem fim, cujo propósito é o eterno desejar e obter, sem nunca ganhar um prêmio por completar o trajeto.

Filosofia Arkade: Jogamos muito sem zerar nada?

Segundo o sociólogo, nossa política de vida vem da prática de comprar: examinamos as possibilidades, experimentamos e decidimos se vale a pena adquirir. E isso vale para qualquer campo da vida.

O consumismo não mais se baseia na necessidade, qualquer que seja ela; o consumo se baseia no desejo, que por ser efêmero está fadado a ser insaciável, tornando a compulsão por adquirir um vício.

A necessidade sólida e inflexível, pois baseada na realidade do que precisamos, deu lugar ao desejo sempre fluido e expansível, relacionado à vontade do indivíduo de realizar fantasias e sonhos.

Porém, mesmo o desejo não é fluido o bastante para acompanhar tamanha agilidade e o dinamismo dessa sociedade moderna e, então, foi substituído pelo puro querer. A compra se torna casual, inesperada e espontânea.

Filosofia Arkade: Jogamos muito sem zerar nada?

Essa compulsão também tem a ver com a insegurança. Quando muitas pessoas estão em perigo, todos correm para o mesmo lado, mas atrás de que se corre? Atrás da segurança de se livrar da sensação de incompetência e derrota. Achamos que não vamos conseguir novamente o que temos, então consumimos mais e não experimentamos por completo o que foi adquirido antes (as Steam Sales que o digam).

E aí o ato de adquirir se torna um exorcismo. Ele não acabará com os fantasmas, mas produzirá o alívio (mesmo que momentâneo) apenas por ser realizado.

Filosofia Arkade: Jogamos muito sem zerar nada?

É por isso que damos tanto valor a jogos e consoles antigos — conforme a nossa idade e o conhecimento sobre eles. Pois sua durabilidade (seja ela material ou mesmo temporal) acaba tendo um aspecto de imortalidade (“longo prazo”), diferente da instantaneidade de objetos transitórios, de “curto prazo”, que tendem a desaparecer com seu uso e que associamos ao que é novo (o novo que se tornará inútil em pouquíssimo tempo).

Alguns games já estão sendo vendidos numa forma incompleta, quase uma demo. Sério que devemos obter algo inacabado? Possuir alfas e betas e nunca um jogo inteiro ao nosso dispor? É claro que compra quem quer, mas esse querer pode, na verdade, ser mais uma armadilha que um poder de escolha. E lá vamos nós comprar mais um game para, talvez, nunca zerar.

E você, joga muito e raramente zera um game? Conte para gente, porque nunca é demais entrar no roleplay. ;)

Fonte de pesquisa: Modernidade Líquida (Bauman, 2001)

14 Respostas para “Filosofia Arkade: Jogamos muito sem zerar nada?”

  • 26 de setembro de 2015 às 15:20 -

    Carlos Schneider

  • Sou feliz de n sofrer do imediatismo, mas foi um trajeto bom até chegar nesse ponto. Geralmente não jogo 8 Games ao mesmo tempo, no máximo 2 pra tentar usufruir oq ele tem a oferecer e assim zerar, tanto q tenho jogos(principalmente antigos) q zerei mais de 3 vezes. Apesar de ter pouco tempo disponível eu entendo a pressa do pessoal em largar pela metade e já começar outro jogo. Acho q quem é da velha guarda de RPG’s principalmente tem essa disciplina de ir até o final.

    • 26 de setembro de 2015 às 16:29 -

      Wagner Sales

    • Normalmente estou jogando de dois a três jogos, consegui chegar num bom ponto administrando meu tempo entre trabalho, games (entretenimento), e projetos pessoais.

      Concordo com o seu ponto sobre a velha guarda dos RPG’s, e foi jogando eles que aprendi a dar mais valor aqueles jogos, até porque não vou jogar 80 horas e depois largar o jogo sem terminar, isso serve de treinamento pra outros jogos que não irão exigir que eu desprenda tanto tempo assim. O jogo tem que me manter preso por no minimo 10 horas, menos que isso eu não volto a jogar.

      Mas essa é o meu modo de curtir, não é uma lei absoluta.

      • 28 de setembro de 2015 às 03:16 -

        Carlos Schneider

      • Tb tenho isso, campanha curta, ou seja, menos de 10-8 h sem fator replay n me dedico.

  • 26 de setembro de 2015 às 16:32 -

    Podegoso Shumy

  • Estou tentando zerar cada coisa que adquiro pela Steam, acho que desde o ano passado, devo ter zerado uns 40 mais ou menos. Estou enrolando para zerar o witcher 1, Mas sigo na luta

    • 29 de setembro de 2015 às 01:30 -

      glauberandrade

    • STEAM é complicado pq comprei muita coisa em humble bundle, mas tirando isso sempre zerei meus jogos com exceção dos atuais de WiiU que morar fora me deixa com pouco tempo para jogar e jogos piratas que pego para testar.

  • 26 de setembro de 2015 às 23:23 -

    Gbroque

  • Eu só jogo um jogo por vez e só vou para um novo depois de terminar o anterior, então isso me ajuda a não sair por aí comprando um monte. Mas admito q já comprei alguns jogos na steam que nunca joguei e sei que nunca vou jogar.

  • 27 de setembro de 2015 às 10:14 -

    Vi Keka

  • Bom texto! Porem, faço ressalvas. Há um tempo atrás li algo que alguém colocou no facebook sobre esse livro e o fato das coisas estarem “muito líquidas”. A única coisa que me veio à cabeça foi a filosofia “be water, my friend” do Bruce Lee. “líquido é fluido; tudo contorna, escapa e se esvai.” Essa é uma maneira de pensar, claro; mas também o líquido é adaptável, toma a forma que necessita, e é flexível.
    O outro ponto é a questão da evolução tecnológica, bem como o crescimento da demanda. Na época do psx-1, a demanda estava em crescimento, e além disso, as empresas, para vender, tinham que fazer o jogo como um livro: com uma boa história. Por isso temos clássicos imortais, MGS e FF-VII, só para citar dois. Os mais novos podem reclamar dos gráficos, mas caso esses jogos ganhassem remakes com a tecnologia atual, seriam facilmente apreciáveis pelos mais novos também.
    Hoje, porém, a oferta se tornou tão intensa quanto a demanda. E então, o que acontece com o mercado? Varia-se a maneira de fazer o produto. Os DLCs, os telltales divididos em capítulos são reflexo disso. E tem demanda para isso, se não esse tipo não vingaria.
    Na realidade, o problema, a meu ver, é que não “somos água, meu amigo”, pois estamos ainda com um pensamento rígido. Isso vale para música também. Não conseguimos acompanhar, no sentido de que o atual faz parte da gente, da mesma forma que a geração mais nova, que absorve essas tendências bem mais facilmente. Provavelmente, daqui uns 20 anos, a geração atual talvez também tenha essa mesma dificuldade nossa.

    • 1 de outubro de 2015 às 01:14 -

      Diana Cabral

    • Gostei da sua ressalva. Conheço essa frase do Bruce Lee e a respeito muito. Também penso que a diversidade de sentido é mais rica que uma interpretação unidirecionada, mas acredito que o Bauman demonstrou sobre um lado negativo dessa interpretação, ou até mesmo o mau uso dessas possibilidades. Sem querer denegrir a imagem e o poder do elemento. :)

    • 1 de outubro de 2015 às 09:21 -

      mikemwxs

    • Boas pontuações, embora eu ache que no caso da matéria, “liquidez” dignifique efemeridade, enquanto na citação de Bruce Lee, ela significa adaptabilidade.

      • 3 de outubro de 2015 às 12:36 -

        Vi Keka

      • Eu sei, e é exatamente esse o meu ponto. Refiro-me ao modo como damos sentido(s) a certas palavras. Ou seja, se penso na liquidez como efemeridade, minha atitude se dará de forma diferente, caso a visse mais como fluidez ou adaptabilidade.

  • 27 de setembro de 2015 às 22:35 -

    Rafael Kenedy

  • Excelente texto! Quero ver mais disso aqui na Arkade!

  • 28 de setembro de 2015 às 02:31 -

    Schmidt

  • Percebi que a algum tempo tenho me tornado um comprador compulsivo de games. Costumava comprar poucos games e ao zerar comprava um novo, ou trocava com alguém. Mas a medida que meus compromissos foram exigindo mais do meu tempo, jogo menos e consequentemente zero poucos, porém continuo comprando. Agora tenho jogos para 5 plataformas diferentes e pouquíssimo tempo livre…alguns games acho que nunca vou zerar e outros nem se quer chegarei a jogar. No meu caso acredito que essa compulsão veio junto com os compromissos infindáveis da vida adulta, onde temos maior poder aquisitivo e pouquíssimo tempo livre, ai comprar um novo game se torna uma satisfação momentânea e realização de um desejo a mais.

  • 28 de setembro de 2015 às 09:07 -

    mikemwxs

  • Postagem interessante, chega a ser até um puxão de orelha…

    • 1 de outubro de 2015 às 01:16 -

      Diana Cabral

    • Um puxão de orelha em todos nós… >•<
      E não somente em relação aos games!

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