God of War: O diabo mora nos detalhes

7 de setembro de 2018

God of War: O diabo mora nos detalhes

Entre o final do ano passado e o primeiro semestre desse ano li dois livros que me foram muito importantes para entender melhor sobre a indústria de jogos e como essa mídia que amo tanto acontece.

O primeiro é Embed With Games, onde Cara Ellison escreveu sobre o tempo que passou com diversos desenvolvedores ao redor de mundo, e partilhou de suas diversas culturas e pensamentos diferentes sobre jogos em si, e Blood, Sweat and Pixels, de Jason Schreier, o cara que na moral, é o mais consagrado jornalista do momento, com diversas matérias investigativas sobre desenvolvimento de jogos, nesse livro ele conta como foram o desenvolvimento de jogos como The Witcher 3, Uncharted 4 e até o cancelado projeto de Star Wars 1313.

Ambos os livros tiveram um imenso valor, acredito que não só para mim, mas para essa indústria em geral, pois nos lembram que há pessoas desenvolvendo esses jogos, e que elas possuem famílias e acreditem ou não, uma vida.

Pessoas, a maioria delas pelo menos, tendem a evoluir e amadurecer, e esse é o pilar que sustenta God of War em cada aspecto. Isso está se tornando cada vez mais comum em jogos atuais, pois desenvolvedores que começaram nos anos 90, com jogos super cool e sem muita substância, hoje em dia estão em seus 40 anos, e isso vem se traduzindo respectivamente em suas obras.

God of War é ótimo exemplo disso, pois é relativamente raro se ver um jogo AAA arriscar tanto e ir contra a maré ao contar uma história mais madura, quando se tem publishers indo sempre para o lado mais seguro no desenvolvimento de um jogo para assim atingir um público maior e não querer arriscar muito em um produto de investimento tão alto.

Em uma palestra recente na Devcom 2018, o diretor do jogo Cory Barlog comenta como foi difícil convencer as pessoas sobre as mudanças para o novo jogo, seja ao introduzir uma nova câmera que agora acompanha Kratos fixamente “sobre seu ombro”, criar um mundo mais aberto e conectado ou em até mesmo para convencer o quão Atreus, filho de Kratos, era importante para o jogo.

Os títulos anteriores são claramente muito icônicos, não só para a Sony e marca PlayStation, mas para a indústria de jogos, suas setpieces, suas mecânicas, seus gráficos de ponta rodando no PS2 e sua enorme violência gratuita, fizeram do jogo um grande trunfo no portfólio da Santa Monica Studios, mas depois de tantos anos era preciso novos ares para a série  —  ainda mais após o botijão de merda que foi o Ascension, e mudanças drásticas eram precisas para atualizar o jogo para uma realidade atual.

Os livros que citei acima retratam muito bem como é muito comum que as pessoas por trás desses jogos são completamente apaixonadas pelo o que fazem, mesmo que isso signifique trabalhar centenas de horas a mais durante o desenvolvimento de um jogo e prejudique sua vida pessoal, seu relacionamento, seja com suas famílias, amigos ou amantes, é um trabalho que não vou mentir, parece muito ingrato.

Se imagine numa situação onde você passa 4 anos da sua vida trabalhando em um projeto, dando seu sangue por ele, e é criticado pela falta de uma poça d’água num cenário ou por perseguir sua visão ao introduzir uma perspectiva diferente em seu novo jogo, sinceramente, deve ser uma torrente de sentimentos, mas o incrível de tudo isso é o fato que mesmo com esse tipo de reação, seja do público ou da mídia, essas pessoas ainda amam o que fazem e dão seu melhor em prol de lhe entregar a melhor experiência possível  —  isso não é um reflexo geral da indústria infelizmente, mas sabendo como o desenvolvimento de um jogo é conturbado fica fácil ter mais empatia com jogos que não atingem seu completo potencial, salvo o fracasso de Mafia 3.

Em um artigo em seu blog pessoal, Vince Napoli, Designer de Sistemas em God of War, conta como foi o desenvolvimento e a lapidação do sistema de arremesso do machado, e ele literalmente começa o texto com: “Após passar os últimos anos trabalhando em God of War, estava tentando imaginar o que fazer com o repentino tempo livre.”

E assim, você lembra a última vez que teve tempo livre no trabalho e resolveu aproveitar esse tempo para trabalhar mais? Esse tipo de atitude e atenção a pequenos detalhes foi o que me motivou a escrever esse texto da maneira que foi. Ele definitivamente está atrasado, todo o hype em cima do jogo se passou, muita gente pode ter esquecido ele, e muitos ainda podem o estar jogando, pois recentemente foi lançado o modo New Games Plus, mas tomei o tempo que foi preciso para escrevê-lo e tentei dar o meu melhor. Isso não é uma resenha, mas sim algumas observações sobre esses pequenos detalhes que me marcaram durante o jogo.

O cristal

Nos títulos anteriores de God of War só era possível recuperar HP abrindo baús espalhados pelo mapa, e Kratos os abria COM O MAIOR ESFORÇO DO MUNDO, o que é estranho para um cara forte como ele, que durante os jogos levanta enormes construções apenas na força bruta, mas se peida para abrir um baú, e isso acaba gerando uma enorme dissonância narrativa, felizmente a Santa Monica Studios mudou como essa interação acontece, agora você utiliza cristais que sempre ficam espalhados pelo chão, verde para HP e vermelho para Fúria.

Outro novo aspecto dele para assemelhar mais elementos de RPG é seu sistema de loot, ao obter itens, Kratos se abaixa e pega o item com a mão em uma animação um tanto detalhada e consideravelmente longa se utilizada no meio de um combate, então obviamente seria muito anti-climático você interagir com os cristais dessa maneira, isso precisaria ser mais rápido e dinâmico, em resposta a isso, ele simplesmente pisa no cristal.

É rápido.
É efetivo.

E ainda condiz com o cerne do personagem. Nem é preciso estar exatamente em cima dele ou com a câmera fixa no objeto, normalmente é possível pisar neles antes do botão de interação aparecer na tela, você acaba se acostumando com o tempo do item, o que vezes vem muito a calhar quando você está em uma batalha muito difícil. A animação não lhe deixa completamente exposto, porém ainda sim é arriscado o suficiente para executar de frente para um inimigo, então você vai querer sempre pensar um pouco antes de se curar.

A decisão é muito acertada quando considerado o ritmo que o jogo toma nos combates, ele definitivamente não quer ser muito metódico, mas quer que você considere várias possibilidades antes de tomar essa decisão, logo o jogo evita uma animação tão longa como a dos Frascos de Estus de Dark Souls ou as poções de Monster Hunter: World, mas sim algo de imediato como os Frascos de Sangue de Bloodborne, onde a animação do item não é tão longa para afetar o ritmo do combate, mas ainda te faz considerar os seus arredores.

Em God of War a cura não é tão constante, se em Bloodborne você carrega os itens com você, aqui deve buscar por eles, o que às vezes pode ser bem ingrato, fazendo você utilizar a Fúria de Esparta não somente para causar dano, mas também para recuperar um pouco de vida, e isso definitivamente mudou muito a minha estratégia para como utilizar esse recurso.

Há não apenas extrema eficiência e decisões muito bem acertadas nesse pequeno detalhe, mas também alguma satisfação oculta em cada vez que você pisa nesses cristais. O som, a animação, o tremer do controle, as partículas, a sua vida regenerando, tudo isso compõe algo que satisfaz de uma maneira quase inexplicável, é como o umami, um dos cinco gostos do nosso paladar, as pessoas sabem o que é, o gosto e o sentimento que lhe causa, mas é algo que sempre aparenta complicado de se explicar e entender, assim como várias coisas que você sente como pessoa, às vezes lógica não se aplica em tudo.

É como esmagar botões para executar vários shield dashs em Symphony of the Night, é suave e crocante. É possível sentir o atrito entre a sola de Kratos e o cristal sendo estilhaçado do momento em que você pressiona o botão, o cristal vermelho de fúria é também um espetáculo à parte, pois as partículas dele explodem parecendo uma pequena bolha de lava estourando na sua frente. A interação com esses cristais é como ver um barman esmagar um cubo de açúcar enquanto te prepara um Old Fashioned que vai lhe encher de vida e ânimo para mais.

O peixe

A mecânica de arremessar o machado, e tudo em volta dela, é provavelmente a mais profunda dentro do jogo, há uma diversidade enorme do que pode acontecer do momento em que o machado é arremessado até o momento que volta para mão de Kratos, muitas vezes ele pode acabar acertando um inimigo na volta, e pode ter certeza que vai acontecer muito sem sua intenção, isso gera várias situações inusitadas, como seu machado voltar bem na hora que você está para receber um ataque, assim cancelando a animação e dano do inimigo. A imprevisibilidade dessa mecânica, é algo que cria uma narrativa emergente, onde situações únicas podem acontecem no seu jogo.

As possibilidades que essa mecânica lhe proporciona são maiores que isso, no início só arremessava o machado para eliminar e priorizar inimigos que atacam à distância ou congelava um inimigo fraco para desabilitá-lo temporariamente do combate, fazendo me focar em outros apenas com os punhos, o que é mais fácil que parece, pois após liberar o uso do arco com Atreus fica bem simples encher a barra de stun dos inimigos, para executá-los com uma ação contextual pressionando o R3, e isso acaba por não te deixar tão dependente do machado, possibilitando arremessá-lo mais vezes sem preocupação.

Após algumas horas de jogo e alguns upgrades liberados, é possível desencadear vários combos arremessando o machado e chamando instantaneamente para um ataque especial, e isso traz ainda mais profundidade para o jogo, essa que é definida pela janela de oportunidades que lhe é apresentada se utilizando de suas mecânicas principais e como elas interagem entre si.

Em um sistema de combate não apenas seus ataques e ações são importantes, mas mais que isso, é como os inimigos reagem, God of War mostra que entende isso, o simples fato do machado acertar os inimigos na volta, é algo que você espera que aconteça e é natural que o jogo lhe entregue isso e continue te imergindo em seus sistemas.

Outra utilidade que pode ser atribuída a mecânica é o cancelamento de ataques inimigos, os comuns são facilmente cancelados apenas sendo acertados pelo machado, agora os inimigos especiais são mais complicados, mas há sempre um momento certo para isso, como os Trolls, sendo inimigos maiores e mais resistentes, só é possível cancelar seus ataques acertando sua cabeça na antecipação de seus ataques, assim também atordoando-o por um breve momento.

Imagino que até agora ficou bem perceptível que God of War é um jogo que se comunica muito pelas suas animações, é sempre possível ver quando os inimigos vão lhe atacar pelas suas antecipações na animação, o início dessas são evidentes o bastante para você saber quando e como o inimigo vai atacar, há certas distinções, ataques mais fortes têm uma antecipação maior e fracos menor, assim como cada inimigo tem suas peculiaridades.

Boas animações são a chave para um bom jogo de ação, e quando é possível ver o extremo carinho em cada animação, sei que houve um esmero digno do mais fino confeiteiro que passou horas minuciosamente colocando diversos detalhes em um cupcake, e isso fica claro como água sempre que vejo a animação de Kratos pegando seu machado de volta. Há momento na animação, peso, e uma casualidade repleta de prazer, pois ele sempre pega seu machado como se fosse uma nota de R$100 recém sacada do caixa eletrônico, é uma animação sempre rica de se assistir

O Pâtissière

Pâtissière, ou como ele é mais conhecido, creme de confeiteiro, normalmente usado para rechear bolos acrescenta uma textura a mais e às vezes uni as partes de um bolo que possui várias camadas, ele também é a base de um recheio, a partir deste creme pode ser trabalhado algo mais complexo utilizando outros ingredientes.

O que isso tem a ver com o jogo?

Bem, há uma habilidade chamada Talho do Carrasco

 —  ou Executioner’s Cleaver, que você pode adquirir bem no início do jogo, e ela basicamente dá uma vida nova ao combate. Segurando R2, Kratos carrega seu machado para trás assim aplicando um golpe mais forte no fim da animação, e inimigos pequenos são executados instantaneamente dando início a uma bela animação. Enquanto carrega o golpe é possível ver o esforço do personagem em aplicar mais força no ataque, a animação gira um pouco o corpo do personagem para frente da câmera, tornando possível ver o busto e os dois braços segurando o machado, isso, acrescentado a velocidade em que o golpe é aplicado e um pequeno tremelique nos braços dele, torna possível sentir o peso e a força do ataque.

Antes havia comentando sobre como é prazeroso pisar em cristais de vida/fúria ou chamar seu machado de volta, há uma pequena diferença nessas três ações. Quando você pisa no cristal, é executada uma ação imediata, você aperta o botão, Kratos pisa no cristal, fim, porém quando chama seu machado de volta, após apertar o botão é necessário esperar ele de fato voltar para sua mão, você não controla a velocidade e o momento exato que ele vai estar em sua mão, fazendo dessa uma ação mais passiva em relação as outras mecânicas do combate.

Agora, quando segura o R2 para finalizar seu inimigo, você tem certo controle da ação, podendo soltar o botão em um breve momento antes que a animação termine, e isso acelerá o processo em que seu machado vai partir seu inimigo, não precisando esperar a animação acabar você fica menos exposto, também é possível cancelar a ação se esquivando para evitar um iminente ataque, mas não se engane muito com isso, esse movimento vai sim lhe deixar exposto.

Há diversas variações em como essa habilidade pode acontecer, você pode acertar inimigos no ar, os trazendo instantaneamente para o chão – o que passa uma certa superioridade no combate, mas uma das melhores animações é quando você usa o golpe e não mata o inimigo, ao final do golpe Kratos chuta o inimigo para longe com uma certa displicência. Muito risco e recompensa são empregados ao utilizar a habilidade, dado o tempo da animação, mas é um risco que só pelo estilo já vale a pena.

Esses pequenos detalhes em contraste com a grandeza e do jogo com um todo, foram o que fixou-o em minha memória, entre sua história, o combate, a exploração, e tantos aspectos primorosos, são esses detalhes que me marcaram, pois é nisso que você percebe que as pessoas envolvidas com esse projeto realmente se importam, detalhes que poderiam passar completamente despercebidos, que não precisavam de um esforço tão grande, mas alguém dedicou seu tempo, e deu o seu melhor para trazer mais qualidade para o jogo, e como sempre é muito prazeroso ver gente apaixonada fazendo o que ama, e esse jogo como toda certeza me passa muito disso.

God of War deixou uma marca muito boa, ao nos lembrar que é possível fazer um jogo AAA focado em narrativa, mas que ainda é mecanicamente estimulante e com um loop de gameplay que não te entedia após as várias horas em que ele te conta sua história.

Artigo escrito por Vinicius Bech: https://medium.com/@viniciusbech/god-of-war-o-diabo-mora-nos-detalhes-7c15830afa15

Uma resposta para “God of War: O diabo mora nos detalhes”

  • 9 de setembro de 2018 às 00:19 -

    Elvson

  • Parabéns pelo texto. Muito bem redigido. Atendeu ao seu propósito. Continue assim.

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