Análise Arkade – mais ação do que terror em The Dark Pictures Anthology: House of Ashes

29 de outubro de 2021
Análise Arkade - mais ação do que terror em The Dark Pictures Anthology: House of Ashes

Pelo terceiro ano consecutivo, recebemos, no tradicional período do Halloween norte-americano, um novo episódio da série antológica produzida pela Supermassive Games e distribuída pela Bandai Namco Entertainment, The Dark Pictures Anthology: House of Ashes. Confirmamos também que este é o terceiro de quatro títulos desta que está sendo chamada de primeira temporada da já estabelecida franquia. Como um fã confesso do gênero, posso dizer que esta é uma das marcas atuais que mais me impressiona pela abordagem dos temas que traz sem qualquer amarra com o que veio antes e pela maturidade com que trata dessas produções.

House of Ashes dá, felizmente, um passo a mais em algumas direç˜ões na comparação com os anteriores. Você deve se lembrar da nossa avaliação de Little Hope, episódio anterior, e também daquilo que falamos sobre Man of Medan, primeiro dos jogos dessa série: há algumas ótimas ideias sendo desenvolvidas, não só trazendo temas já bastante explorados em outras mídias, sobretudo o cinema, mas o formato da gameplay e o ritmo de desenvolvimento da narrativa sempre pareceram instáveis.

Iremos explorar cada um desses aspectos no texto a seguir, com mais detalhes, mas já adianto que: por um lado, a jogabilidade, para o bem e para o mal, se mantém praticamente intocada; por outro, a estrutura narrativa se mostra muito superior ao que havia sido feito antes.

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Cada vez mais fundo

A história de The Dark Pictures Anthology: House of Ashes trata de uma unidade de militares, em um dos momentos mais tensos dos combates no Iraque pós 11 de setembro, enfrentando algo muito mais sombrio do que eles imaginavam ao desembarcar no Oriente Médio. Ao serem praticamente engolidos por crateras durante um confronto, o grupo se vê perdido em um emaranhado de cavernas e corredores subterrâneos, e não demora muito para perceberem que não estão sozinhos.

Se o tema nos remete a uma série de outras obras da ficção de horror, que vão desde Um Drink no Inferno (From Dusk Till Dawn, 1996) a Abismo do Medo (The Descent, 2005) e outras — não vou citar outras referências para não entregar spoilers demais — e exatamente por isso lida com alguns dos clichês mais batidos do formato, é na estrutura narrativa onde há a mais evidente evolução dentro da antologia. House of Ashes é muito bem desenvolvido, tem solidez na organização dos múltiplos pontos de vista adotados e mantém um ritmo crescente do começo ao fim.

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Explico melhor: como já se tornou uma característica intrínseca das produções da Supermassive, o jogo é organizado no sistema de multi protagonismo, o que significa que ao longo da campanha assumimos o controle de vários dos personagens da trama, cada qual com o seu arquétipo comum, como o soldado modelo; o líder inseguro e de moral questionável, o inimigo que pode ser mais do que isso; o guerreiro traumatizado… Estão todos lá, e certas sub-tramas são previsíveis logo nos primeiros minutos de apresentação da obra.

Ao jogador (ou jogadores, porque o jogo permite o multiplayer do “passa o controle” local ou on-line) cabem duas alternativas: encontrar uma linha de condução única buscando a harmonia, na medida do possível, das relaç˜ões entre eles; ou adotar a postura de imersão interpretativa e tomar as decisões que mais se alinham com a personalidade previamente estabelecida de cada um. Pessoalmente, confesso que prefiro sempre fazer escolhas coesas com o que eu entendo da pessoa, mesmo que não seja a forma como eu conduziria se fosse um avatar ou um herói construído do zero. Felizmente, dá para fazer das duas formas, porque o jogo não é particularmente longo, e o convite para novas investidas para eventuais escolhas diferentes é parte da proposta, o que resulta em um fator replay importante.

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Isso porque o jogo segue o formato de uma grande história rizomática, que oferece certas ramificações que resultam de escolhas morais e comportamentais, normalmente feitas durante diálogos e outros pontos chave — você escolhe, por exemplo, se arrisca a própria pele para salvar o seu desafeto ou se o deixa para trás como vingança, dentre outras decisões do mesmo tipo; e há também as bifurcações que são resultado da própria ação do jogador em situações de QTE, aquelas onde precisamos agir rapidamente conforme comandos que aparecem na tela. Errar ou deixar de realizar um movimento propositalmente também traz consequências que não são necessariamente a tela de Game Over.

Essa complexidade de condução é muito bem ajustada aqui e mesmo que nenhuma dessas opções transforme, como nos melhores RPGs de mesa, a história completamente — não importa como, há uma espinha dorsal fixa — a forma como chegamos até lá (e com quem vivo, principalmente) é muito afetada por esse comportamento. Certas conclusões, inclusive, não são resultado de escolhas diretas, mas sim da soma de tudo o que foi feito anteriormente. Ou seja, nem sempre você fará a decisão derradeira se vai ou não atender um chamado de socorro pelo rádio, por exemplo, e pode parecer que no final não tivemos a chance de decidir, mas basta jogar novamente pra saber que aquela decisão tomada pelo personagem é fruto do conjunto da obra.

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A alegoria clara do jogo, óbvio, está calcada nas relações complexas, nas cicatrizes escondidas, nos demônios de cada um. A cada novo capítulo da história, somos informados sobre quem estamos controlando e, como o jogo faz questão de destacar o tempo todo, a profundidade em relação à superfície. Quanto mais fundo estamos no buraco, quanto mais longe da luz, mais nossos protagonistas são levados a confrontar a si mesmos, mais precisam ir fundo em suas consciências.

Alianças necessárias são formadas, feridas antigas são reabertas, parcerias improváveis são colocadas à prova. Para emergir, é preciso descer um pouco mais. Como diria Harvey Dent em Batman: O Cavaleiro das Trevas, é sempre mais escuro antes do amanhecer. Como nas melhores produções, o subtexto está lá, acessível, provocativo, mas não há uma necessidade de ser jogado na cara do jogador o tempo todo. Sob um olhar superficial, como nos jogos anteriores, as relações pessoais e a construção dos personagens pode ser relegada a algo secundário se assim desejarmos. Todavia, que bom ela estar lá.

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Os sustos dão lugar à ação

Os dois episódios anteriores de The Dark Pictures apostaram em temáticas sobrenaturais que lembravam, propositalmente ou não, obras recentes do terror como A Maldição da Residência Hill (The Haunting of Hill House, 2018) ou as produções do realizador James Wan, apostando na criação de um clima de tensão sobrenatural e naquele frio na espinha constante, aquela sensação de incômodo crescente com aquilo que está escondido nos cantos mais sombrios. House of Ashes traz algo diferente, e passado o primeiro momento de mistério, logo acaba funcionando muito mais como uma obra de ação e suspense do que de horror propriamente dito.

Não que abandone o medo como grande mote de motivação, muito menos o ambiente escuro quase claustrofóbico, muito pelo contrário. Mas ao mesmo tempo, o receio com o que está oculto não é pelo receio do susto fácil, pelo jump scare sem-vergonha onde muitas vezes se apoiam materiais de pouca substância. Ainda que aborde criaturas fantásticas e um certo mal encarnado que leva a revelações bastante surpreendentes, chega o momento onde é a violência daquilo que já se sabe, e não o pavor do desconhecido, que move a trama. É como se saíssemos de obras como Invocação do Mal (The Conjuring, 2013) e caíssemos em Alien, O Oitavo Passageiro (Alien, 1989) ou Guerra Mundial Z (World War Z, 2013).

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Perceba que as referências audiovisuais que citei no texto não são um mero acaso. As obras da Supermassive, desde o subestimado Until Dawn (2015), tem um forte apelo cinematográfico tanto pela densidade narrativa quanto pela construção estética. Exatamente por isso, são jogos que podem não agradar todos os jogadores que esperam um nível de jogabilidade diferente, mas que acertam em cheio outros que procuram uma história imersiva e envolvente. Assim, quando estou falando de uma dedicação maior à ação, saiba que falo da abordagem da história, não do gameplay. Este se mantém bastante similar ao que veio antes.

Na maioria do tempo, portanto, você estará fazendo escolhas de diálogos e reagindo a eventos pontuais. O acréscimo de níveis de dificuldade, aliás, está vinculado basicamente ao tempo que o jogo dá para que você realize o comando esperado. Jogando no modo fácil, que privilegia o conforto das ações, muito provavelmente um jogador casual poderá fazer suas escolhas sem a pressão da punição por erros consecutivos. O erro ainda é possível, sobretudo para jogadores sem muita prática com essa resposta rápida, mas o sistema é propositalmente montado para que suas escolhas e ações sejam acomodadas com tranquilidade.

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Por outro lado, na dificuldade mais elevada, é provável que muita coisa fuja do controle em qualquer bobeada e que tenhamos que lidar com as consequências disso. A janela de ação aqui é bastante precisa e por vezes nos surpreende, mas segue um padrão que quem já se deu bem vencendo Zeus lá em God of War II vai conseguir controlar com propriedade. Como já é de se imaginar, na modalidade mediana não há muito com o que se preocupar e mesmo que percamos uma janela aqui e outra ali — tirando a cena final que é mais rígida — dá pra seguir sem maiores sustos.

Senti falta, porém, do uso mais criativo das possibilidades dentro do formato limitado dos QTE. Com exceção de dois trechos — um bem no começo, outro bem no final — onde há um jeito diferenciado de se apertar a sequência de botões, todas as demais são pautadas em combate armado, onde você leva o cursor até o ponto de interesse e dispara/golpeia; movimentos físicos, onde o comando é dedicado a saltar, desviar, esquivar ou algo do tipo; e movimentos de força, para o qual é necessário pressionar um botão rapidamente com frequência para abrir uma porta, segurar uma pedra sobre seu corpo ou algo do tipo.

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As restrições de controle incluem também o uso pouco criativo das qualidades do DualSense, por exemplo, que se mantém no lugar comum da vibração simplificada em disparos de armas de fogo ou partes de correria. Toda a interação com o ambiente também é pobre, relegada a chegar a um ponto de interesse brilhante, apertar um botão e, quando muito, virar uma página para ler o que está escrito atrás, algo que resulta em descobrir um segredo colecionável, um manuscrito ou algo que detalhe um pouco melhor o que está se passando ali. Também voltamos a encontrar premonições que ajudam em decisões futuras, mas nada que passe muito disso.

Somado a tudo isso, os momentos de movimentação livre pelas salas e corredores é bastante burocrático e pouco responsivo. Em palavras mais diretas, o jogo é muito rígido e mesmo apontar a lanterna para a direção desejada é mais complicado do que deveria. Cantos e salas apertadas são particularmente irritantes e mesmo a movimentação praticamente livre da câmera, algo também novo na franquia, não ameniza essa sensação de parecer estar amarrado o tempo todo. Por tudo isso, se você não é fã desse estilo, não é House of Ashes que vai mudar a sua opinião.

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Quase lá

Se há uma evolução clara nesta nova investida da agora confirmada quadrilogia é, até pela mudança de geração, a questão técnica audiovisual. Não há dúvidas que os cenários estão belíssimos, cheios de detalhes e com texturas de altíssima qualidade, mesmo que grande parte dele esteja escondido pela escuridão na maioria do tempo. Cavernas, espaços abertos, mesmo cenários sob a luz forte do sol, maquinários, tudo parece muito próximo do realismo atmosférico que parece parte da proposta da franquia.

O único destaque negativo, pelo menos para mim, está na ainda estranha expressão facial dos personagens, principalmente na representação da atriz com maior nome no elenco, Ashley Tisdale, que interpreta Rachel. As texturas de pele, de tecido, de cabelo, estão impecáveis, mas muitas vezes as expressões, e principalmente o olhar, parecem artificiais demais, causando aquele desconforto do uncanny valley que parece um leve downgrade em relação ao não perfeito, mas ótimo trabalho de Little Hope. Sim, lá na análise do game eu já destacava que esse quesito ainda estava flutuando pelo vale do estranhamento, mas House of Ashes tem alguns deslizes mais perceptíveis, como pupilas que se movem bizarramente, movimentos musculares da face estranhas e coisas assim.

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A despeito desse ponto específico, há uma melhora significativa em termos de animação dos modelos humanos, conferindo identidade e diferenciação quando no comando de um ou de outro, e a iluminação está especialmente incrível aqui, sobretudo quando se trata das diferentes fontes e de temperatura de cor, efeitos de sombra e reflexo, e comportamento de ambiente. Há alguns problemas na montagem das cenas também, mas é algo até compreensível dada a complexidade de se encaixar cenas de tantas escolhas diferentes.

Já a dublagem (original em inglês somente) segue o ótimo nível estabelecido pela desenvolvedora, com boas interpretações dentro do que se espera do gênero, as vezes um tanto quanto canastronas, mas sempre convincentes. A ambientação também acompanha o ritmo de aprofundamento da história, com ecos e ruídos que aumentam gradativamente essa sensação de isolamento do mundo da superfície. A trilha musical tem ótimas escolhas, mas em grande parte do tempo o silêncio angustiante é o nosso principal companheiro, ainda que este seja um jogo onde as conversas entre companheiros sejam bastante constantes.

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Como um todo, The Dark Pictures Anthology: House of Ashes traz uma ótima construção estética, belos cenários e um trabalho de iluminação fundamental para que um jogo dentro de cavernas funcione. Ainda quero ver uma melhora facial ao longo da geração, mas de um modo geral, a Supermassive está dentre as principais devs preocupadas com esse aspecto, mesmo estando um pouco atrás de gigantes como a Nauthy Dog e a Rockstar.

Aliás, o material de bastidores disponível é bem interessante e mostra um pouco mais dos esforços criativos desta área e valem a pena ser conferidos depois de se finalizar a campanha. Uma pena que a participação do curador, uma figura misteriosa que faz as vezes do narrador-observador da história e que foi muito mais participativo — com doses de intervenção indireta — nos games anteriores foi bastante reduzida aqui e ele aparece basicamente em três oportunidades. Como contador de causos, é uma figura muito interessante e que costumava trazer muita substância ao contexto, quase que um respiro para refletir junto com o jogador sobre o que acabara de acontecer e o que estava por vir.

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Conclusão

Este terceiro episódio de uma saga que promete ainda muitas surpresas — como de costume, o capítulo seguinte, The Devil In Me, já foi confirmado com um teaser ao final da campanha como uma boa e velha cena pós-créditos — consegue equilibrar um refinamento das bases estabelecidas nos títulos anteriores sem contudo descaracterizar a saga. Temos já um conjunto coeso, muito consciente daquilo que quer e com ótimas surpresas que certamente vão agradar todos aqueles que acompanham a Supermassive Games nos últimos 10 anos.

Com uma narrativa muito bem estruturada sem engasgos, este é um jogo com um bom ritmo e que não se desvirtua, não se torna cansativo e nem tenta abraçar mais do que pode, resultando em uma campanha de aproximadamente cinco horas muito bem aproveitadas. As atuações mantém um bom nível, a jogabilidade no estilo “história interativa” atende o que promete e o visual, exceto pelas expressões faciais ainda em evolução, é um verdadeiro deslumbre atmosférico. Se Little Hope ainda é o meu capítulo preferido pela temática e pela montagem, House of Ashes é, sem sombra de dúvidas, aquele com melhores desenvolvimento e acabamento.

Lançado para Playstation 5, Playstation 4, XBox One, XBox Series e PC em 22 de outubro de 2021, The Dark Pictures Anthology: House of Ashes está localizado para o português nos textos, menus e legendas, enquanto tem opção de voz somente para o inglês.

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