Análise Arkade – The Vale: Shadow of the Crown, uma aventura medieval às cegas

21 de agosto de 2021
Análise Arkade - The Vale: Shadow of the Crown, uma aventura medieval às cegas

Essa vida de “jornalista de games” já me deu a oportunidade de conhecer muitos jogos que, se eu tivesse que pagar, provavelmente nunca jogaria. Algumas dessas experiências foram excelentes surpresas. Outras foram decepcionantes. E esta semana, recebi uma key de The Vale: Shadow of the Crown, sem saber quase nada sobre ele. E olha, ele sem dúvida é uma experiência única — para o bem e para o mal.

Ensaio sobre a Cegueira

A cegueira não é algo inédito nos videogames. De cabeça, consigo me lembrar do jogo de terror Perception e do simpático Beyond Eyes abordando esta deficiência. Nestes casos, porém, a cegueira é tratada como um superpoder (naquele estilo “sonar”, como o Demolidor), ou como algo mais lúdico e mágico.

The Vale: Shadow of the Crown me parece ser o primeiro jogo que leva a cegueira realmente a sério. Este review vai ter poucas imagens, justamente porque, na maior parte do tempo, o que a gente vê na tela é basicamente isso:

Análise Arkade - The Vale: Shadow of the Crown, uma aventura medieval às cegas

Esses “vagalumes” sob um fundo preto são tudo o que o jogo nos mostra na maior parte do tempo. É no som que estão todas as nuances do game. Sua história e até mesmo seu gameplay estão intimamente conectados ao que ouvimos. Eu diria que este é mais um “audiogame” do que um videogame, uma vez que quase não há nada para vermos, mas muito para ouvirmos. Na prática, enquanto jogamos, estamos tão cegos quanto a protagonista, Alex.

The Vale: Shadow of the Crown é um RPG medieval diferenciado. Alex é uma jovem que nasceu cega. E, por conta disso, passou boa parte de sua vida protegida, escondida. A única pessoa que lhe deu algum tipo de treinamento foi seu tio.

Quando seu irmão mais velho assume o trono do reino, ele envia Alex para um espécie de exílio, onde ela deverá guardar uma pequena fortaleza nas fronteiras do reino. Porém, o comboio em que a jovem viajava é atacado, e apenas Alex escapa com vida.

Sozinha e perdida na escuridão de sua cegueira, a jovem guerreira terá que encontrar o caminho de volta para casa. Ela acaba “esbarrando” em um pastor que irá ajudá-la. Ao longo de sua jornada, ela vai acabar aprendendo muito sobre seu reino e sua família.

Falar mais do que isso seria spoiler, mas, embora este definitivamente não seja um jogo tradicional, ele envolve certas convenções típicas dos RPGs tradicionais: vamos comprar equipamentos, cumprir sidequests, visitar vilarejos, enfrentar inimigos e ajudar aldeões. A diferença é que faremos tudo isso “no escuro”, orientados apenas pela audição.

Ouvindo um mundo

É difícil falar objetivamente sobre The Vale: Shadow of the Crown, uma vez que ele é muito mais uma experiência sensorial do que um jogo propriamente dito. É como se estivéssemos acompanhando um áudio drama interativo, com o qual podemos interagir e tomar decisões.

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Fazemos compras sem ver o que estamos comprando

Por meio do áudio binaural 3D, o jogo faz um excelente trabalho em imergir o jogador em um rico mundo de sons, vozes, barulhos e ruídos. Este é um jogo que precisa ser jogado com um bom par de fones de ouvido, pois é o som que vai nos guiar o tempo todo. Usei meu bom e velho headphone HyperX Cloud Alpha e tive uma ótima experiência.

Quando estamos explorando um ambiente, o jogo nos dá pistas auditivas do que podemos fazer. O som da água corrente de um rio, os estalos crepitantes de uma fogueira ou o ranger de um moinho, são sinais que o jogo nos dá para que possamos nos localizar.

Graças ao excelente trabalho de mixagem de som do game, podemos sentir esses sons ficando mais próximos ou afastados, mais centralizados ou nas laterais esquerda/direita. É preciso se concentrar e prestar a atenção, mas este esforço é recompensado por uma experiência realmente única.

Um exemplo muito interessante que rola bem no começo da campanha: quando chegamos a um vilarejo, nosso amigo pastor está com a perna machucada e pede que compremos alguns medicamentos. “Vou esperar aqui, juntos aos animais”, ele avisa. Então, devemos seguir os gritos de um vendedor para comprar o que precisamos. Na volta, usamos o “có có” das galinhas e o “béééé” dos bodes para encontrar novamente o pastor. Não vemos absolutamente nada disso na tela, é o som que nos guia.

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O mapa é uma das poucas coisas que podemos ver no jogo

Para encontrarmos o ferreiro de uma vila, basta seguir o som característico do martelo retinindo em uma bigorna. O som de uma cachoeira, o uivo de um lobo, a diferença entre passos na areia e na madeira… tudo isso é útil em nossa exploração. É como se jogássemos de olhos vendados.

A movimentação é livre pelo analógico esquerdo, e, quando precisamos tomar alguma decisão — tipo aceitar um quest ou comprar um item –, usamos o gatilho direito para “sim” ou o esquerdo para “não”. O jogo usa poucos botões do controle, mas faz isso de maneira criativa, para não tornar as coisas complicadas demais.

Combates no escuro

The Vale: Shadow of the Crown não é apenas um jogo de exploração: ele também possui combates. Ao longo de nossa aventura às cegas, vamos ter de enfrentar bandidos, lobos, ursos e diversos outros perigos.

Análise Arkade - The Vale: Shadow of the Crown, uma aventura medieval às cegas
Na chuva, os “vagalumes” viram gotas

Mecanicamente, tudo é relativamente simples: quando entramos em combate, não podemos nos mover, mas podemos atacar em três direções — esquerda, centro e direita. Com o analógico direito, controlamos a direção dos golpes. A alavanca esquerda, por sua vez, perde a função de mobilidade e assume a de defesa: podemos erguer nosso escudo nas mesmas três direções para repelir as investidas inimigas. Posteriormente, ainda conseguimos um arco, para ataques à distância e emboscadas.

Através de flashbacks, o jogo nos ensina o básico dos combates. Como no vídeo abaixo, onde o tio de Alex lhe ensina como se antecipar aos ataques inimigos com base no som para evitar rechaçadas. Repare na voz feminina, que descreve o que devemos fazer:

Os inimigos nunca ficam parados, então precisamos de concentração total nas batalhas. Som de vozes conversando, armas sendo desembainhadas, gritos de ataque e passos são tudo o que temos, e devemos usar tudo isso a nosso favor para defender e atacar.

Embora tudo isso funcione, confrontos com grupos de inimigos tendem a ser bem confusos: há muitos sons e vozes se sobrepondo, fica difícil de se focar em um de cada vez. O mesmo vale para as lutas contra lobos (que geralemente chegam em bandos) e outras feras. No esquema 1×1 o sistema funciona bem melhor, podemos prestar atenção a cada passo do inimigo — sim, eles podem mudar de posição ao longo do combate, atacando primeiro pelo centro, depois pela direita, por exemplo.

Vou deixar abaixo um vídeo de uma batalha conta alguns lobos. Recomendo o uso de fones de ouvido:

Ataques à distância também foram um problema para mim. Eu ouvia o crepitar do fogo e as vozes dos inimigos acampando, mas minha flecha nunca encontrava o alvo. Com isso, minhas investidas furtivas sempre fracassavam, e eu me via cercado. Realmente não peguei o jeito de usar o arco e gostaria que ele fosse mais intuitivo.

Como em praticamente todos os outros aspectos, The Vale: Shadow of the Crown subverte um conceito tradicional dos videogames — o combate — na forma de algo novo, diferente. Não é sempre que isso funciona, mas quando funciona, é muito recompensador.

Um jogo sobre acessibilidade não muito acessível

Do mesmo jeito que a Ninja Theory consultou psiquiatras para a produção de Hellblade, o estúdio indie Falling Squirrel teve a consultoria do Canadian National Institute for the Blind para tornar a experiência o mais autêntica possível. E, eles foram muito bem sucedidos na missão de fazer o jogador sentir-se cego.

O jogo todo é pensado para deixar o jogador no escuro: temos um inventário, mas não vemos nossos itens. Ouvimos conversas, mas não temos legendas. O foco está totalmente na audição. Enquanto navegamos por menus, contamos com uma espécie de áudio descrição, que nos ajuda a entender o que deveríamos estar vendo.

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Esse é o inventário. É assim que sabemos que armas estamos usando.

Graças ao excelente trabalho de dublagem e interpretação, tudo funciona muito bem e contribui com a imersão. O jogo tem alguns atores e dubladores experientes no elenco — como Karen Knox (Starlink, Far Cry 5), Samer Salem (The Expanse, The Handmaid’s Tale) e Steve Cumyn (Far Cry 3, Versailles) — que realmente enriquecem a experiência.

Na verdade, todo o departamento sonoro do game é incrível, e sem dúvida vai angariar alguns prêmios nos próximos meses. Não deve ser fácil criar um mundo que soa vivo e movimentado aos ouvidos, mas os desenvolvedores se superaram.

Minha única crítica é que, para um jogo sobre acessibilidade, infelizmente The Vale: Shadow of the Crown não é muito acessível. Sem nenhum tipo de legenda, você precisa ter um excelente nível de inglês para não ficar perdido, uma vez que a narrativa e as indicações do que devemos fazer são nos passadas apenas por voz.

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Acredito que isso seja proposital — cegos não podem ler legendas, afinal –, mas isso acaba tornando o jogo extremamente inacessível. A única forma de resolver isso seria oferecendo dublagens em diversos idiomas, mas seria financeiramente impossível para um estúdio indie bancar isso com qualidade. Então, fique avisado: para curtir a experiência, compreender inglês é fundamental.

Conclusão

Como eu disse lá no início do texto, trabalhar com games me permite testar muitos jogos que eu dificilmente compraria. The Vale: Shadow of the Crown é um desses jogos. Ele é um projeto muito único e inovador, mas o jogador precisa saber no que está investindo seu dinheiro, pois o que temos aqui é algo totalmente fora dos padrões da indústria.

Pessoalmente, eu achei a proposta do jogo incrível. A execução, no entanto, deixa um pouco a desejar, especialmente nos combates. Eu preferia que o título fosse mais focado na exploração, pois é nesses momentos que The Vale realmente brilha, e tira o máximo proveito de sua temática. Ou que ele, pelo menos, se focasse em duelos 1×1.

Assim, recomendo o jogo só para jogadores mais aventureiros, que tem a cabeça aberta para experiências diferenciadas. Só não esqueça que um bom par de fones de ouvido e um bom nível de inglês são essenciais para a jogatina.

The Vale: Shadow of the Crown foi lançado em 18/08, com versões para Xbox One, Xbox Series X|S e PC.

Uma resposta para “Análise Arkade – The Vale: Shadow of the Crown, uma aventura medieval às cegas”

  • 21 de agosto de 2021 às 22:32 -

    Helinux

  • Kbuloso!!!! valeu!!!!

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